*Por Malu Fontes
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A cada 15 segundos, uma mulher é espancada no Brasil e, a cada dia, 10 mulheres são assassinadas no país. Os dados são atualíssimos, levantados pelo Mapa da Violência no Brasil. Os agressores são, quase que invariavelmente, o namorado ou o ex, o marido, o companheiro ou o ex. Enquanto os telejornais nacionais ainda voltam-se quase que diariamente para os crimes, ainda insolúveis, cometidos contra Mércia Nakashima e Eliza Samudio, e silenciam, dada a quantidade de casos semelhantes diários e impossíveis de serem todos abordados, sobre todos os outros milhares ocorridos desde a morte/desaparecimento das duas, a TV local apresentou nesta semana a sua própria Eliza-Mércia. Em Salvador, a família de Marleide de Oliveira Junqueira, 37 anos, está desesperada com o seu desaparecimento, há mais de 20 dias, e acusa seu namorado de estar envolvido no que quer que tenha ocorrido.
O mais impressionante dos dados levantados pelo Mapa da Violência é a discrepância de sentido entre o que dizem os entrevistados homens sobre a agressão moral, psíquica e física cometida contra a mulher e os índices dessas mesmas agressões, apontados pelo Sistema Único de Saúde e pelos boletins de ocorrência das delegacias de todo o país. Ou seja, a menos que se acredite que as mulheres brasileiras são agredidas, espancadas, assassinadas e, em graus muito mais quantitativos, ofendidas moralmente e submetidas a sofrimento psíquico entre quatro paredes, por ETs que vêm de Marte, pode-se deduzir que os mesmos machos que, no espaço público, são quase militantes antiviolência contra a mulher, são, eles próprios, os agressores contumazes dos índices.
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TIROS - Os mesmos homens que se dizem contra, levando-se em conta o percentual da discordância masculina nas pesquisas quanto à violência dessa natureza, são, também, os responsáveis pela chegada das mulheres a delegacias, hospitais, consultórios médicos ou cemitérios. É a velha tese: diz-se uma coisa, faz-se outra. Que o diga o ex-namorado de Mércia Nakashima, capaz de absorver toda a produção de óleo de peroba do mundo quando sustenta que nada tem a ver com os tiros deflagrados contra a advogada, cujo corpo foi encontrado dentro de um carro submerso numa lagoa.
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Nos casos diariamente veiculados na TV, representativos dos milhões de outros que ocorrem nesse instante nas melhores famílias brasileiras e que jamais virão a público, o que paira, depois do machismo histórico nacional que corticaliza nos homens a certeza de que as mulheres são suas e devem funcionar como se fossem passíveis de comando por um controle remoto acionado pelo desejo deles, é o pântano que norteia muitas relações amorosas estranhíssimas, perigosamente e lentamente construídas na intimidade dos casais. Esse é o território que fermenta os desfechos de casos como o de Eliza, Mércia e Marleide, nos quais as motivações da doença da agressividade resumem-se, quase todas, a ciúmes, vontade de controle e à certeza, por parte de muitos homens, de que, diante de uma mulher a quem eles dizem amar, são os donos de um código de leis privativo que vão ditar sempre que quiserem e ao qual elas devem obedecer.
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Dois filmes recentes, e mais densos que ilustrativos da condição feminina no mundo, traduzem para além de suas respectivas poéticas trágicas, a violência que o mundo dos homens é capaz de cometer contra as mulheres: Vincere, sobre a primeira mulher de Benito Mussolini e como o poder masculino sabe e pode adoecer e matar uma mulher literalmente quando ela não se adequa ao papel da atriz mentirosa que deveria atuar em sua própria vida, negando suas próprias certezas e desejos; e Hanami/Cerejeiras em Flor, sobre como o mais apagado e bundão dos maridos pode ser um assassino em potencial de desejos, projetos e sonhos femininos, sem deixar rastros visíveis de violência ao longo de uma vida num casamento.
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BARRACO - O fato, diante da violência de todos os tipos contra as mulheres, noticiados dia sim e outro também nos melhores e piores telejornais do país, é que, sob a imagem corriqueira de um casal na rua, pode haver um disfarçado e violento legislador da alma feminina. Impotente e certo da sua incapacidade de habitar os desejos e a natureza do seu objeto de prazer e posse, e mais ainda, de comandá-los, é um agressor em potencial. Diante de qualquer frustração, pode e vai lançar mão de armas que muitas mulheres, quando as identificaram como ameaça era tarde demais. E não vale aqui as mães zelosas e suas filhas castas acharem que Eliza Samudio morreu porque era puta. Antes de acionar os mecanismos do julgamento moral torto para justificar violência, que olhem para seus maridos comportados, seus pais provedores, seus irmãos do bem, seus namorados, e lembrem-se que, sem eles como clientes, não haveria putas.
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Às mulheres, o diagnóstico que as leva para os centros de tortura, na linha dormindo com o inimigo é, quase sempre, a síndrome torta da cobertura. Quando apaixonadas, as mulheres, diante de um homem-barraco, sempre acham que vão transformá-lo numa cobertura, quem sabe até num dúplex. Auto-engano do bom. Um barraco nunca será uma cobertura. No máximo será um armengue, um barraco maquiado que, diante de qualquer ventinho, vai mostrar do que é feita sua estrutura interna e sua base essencial. Mas nenhuma mulher é proibida de tentar. E disso são feitas tanto as equações das tragédias vistas na TV quanto das silenciadas nos recônditos privados: uma mulher que se crê capaz de transformar barracos em cobertura e homens que se dizem radicalmente contra a violência e, na intimidade, quando vêem seus códigos de leis contra a alma alheia desobedecidos, incorporam um Jack básico, o estripador. O principal desafio do combate à violência masculina contra a mulher é que, quase sempre, ela só se torna pública e crível quando se derrama e torna-se irreversível.
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*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 12 de Setembro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com
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